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GIL VICENTE FEZ 550 ANOS
Por António Loureiro (Professor), em 2015/02/261169 leram | 0 comentários | 141 gostam
A crer como certo o ano de 1465 como a data de nascimento de Gil Vicente, patrono do nosso agrupamento escolar, perfazem 550 anos.
Gil Vicente (1465-1536) que o genealogista D. António de Lima afirma ter nascido em Guimarães e que Camilo Castelo Branco defende na novela “A Viúva do Enforcado” – inserida na obra “Novelas do Minho - ser natural da freguesia de Urgezes, viveu quase toda a sua vida na corte, em Lisboa, durante os reinados de D. Manuel I (1495-1521) e D. João III (1521-1557), sob a proteção real, em especial da rainha Dona Lianor, a quem dedica muitas das suas peças, por vezes encomendadas para celebrar festas religiosas ou acontecimentos marcantes. Aliás, a sua primeira peça, intitulada “O Monólogo do Vaqueiro” (1502), seria representada na câmara da rainha Dona Maria, no velho palácio de Alcáçova, no dia seguinte ao nascimento do príncipe João, futuro rei D. João III, numa saudação a esse mesmo acontecimento.
Ora, Gil Vicente escreveu mais de 40 peças de teatro, reunidas em 1562, após a sua morte, pelos seus filhos Paula e Luís Vicente, na obra “ Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente”. Uma vasta produção literária e bilingue, pois cerca de um terço da sua obra foi escrita em língua castelhana, cujas fontes brotam dos textos religiosos, da tradição popular portuguesa, em especial do folclore e da literatura oral, bem como da inspiração e leitura das éclogas espanhóis de Juan del Encina, do antigo teatro cómico francês e até dos romances de cavalaria. Obviamente e ainda que o teatro vicentino possa considerar-se uma criação original, uma vez que as manifestações teatrais pré-vicentinas se cingiam a representações elementares de carácter religioso, profano e satírico, às quais falta a aliança indissociável de um texto e da representação do ator, estas representações rudimentares não são contudo alheias a mestre Gil que as inova graças ao seu prodigioso poder de invenção e criatividade, não só através da sua enorme galeria de personagens, em especial seus tipos-sociais (personagens que revelam a psicologia do seu grupo social de pertença), como também pela sábia utilização de vários processos de cómico (linguagem, situação e carácter). Deste modo, suas peças facultam-nos uma visão aproximada da sociedade portuguesa do seu tempo, em especial nos seus vícios, cujo alvo fundamental visava a crítica aos poderosos, aos materialistas e corruptos, à ambição sem escrúpulos e à imoralidade e ao luxo. Assim, na sua produção literária, conjuga-se uma atitude de denúncia moralizante e interventiva de cariz humanista com outras facetas caracteristicamente medievais, evidentes na estrutura alegórica de muitas das suas peças de inspiração religiosa, na linguagem arcaizante e no uso da redondilha maior (versos de sete sílabas), aspectos que o enquadram como um escritor de transição entre os tempos medievais e a mentalidade humanista renascentista.
De facto, três períodos diferenciados se podem distinguir na obra vicentina: um primeiro período em que predominam os autos pastoris e as peças de devoção de cariz mais religiosa, com uma ação dramática rudimentar, em que impera a ordem e a harmonia e que culmina grosso modo entre 1502 e 1508; um segundo período, até cerca de 1520, no qual a corrente profana predomina e a inspiração religiosa se esbate, assumindo-se a ruptura da ordem e da harmonia estabelecidas perante o “desconcerto do mundo”, surgindo os temas de crítica social e patrióticos, construídos com maior dramatismo e diálogos mais vivos e naturais; e um terceiro período (1521-1536) em que o teatro vicentino se enriquece, introduzindo a mitologia, o enredo novelesco e a alegoria fantasista, recorrendo ao diálogo mais fluído e mordaz e à crítica mais atrevida. É com efeito a este desconcerto decorrente dos Descobrimentos, guerras europeias e crise da Igreja, ainda que numa época anterior à Inquisição (1536), que Gil Vicente dá resposta através da sátira, que funcionava como uma espécie de catarse e “medicina autorizada” pela monarquia e que não poupa (quase) nada nem ninguém: certas pessoas, defeitos humanos , vícios intemporais como a usura (Auto da Barca do Inferno) ou tipos humanos como o velho apaixonado (O Velho da Horta). Mas são sobretudo os tipos sociais o objecto das atenções satíricas vicentinas, às quais (quase) ninguém escapa: os fidalgos e a nobreza (Auto da Barca do Inferno e Farsa dos Almocreves); o clero, não só na da hierarquia mais baixa (Auto da Barca do Inferno, Clérigo da Beira e Farsa de Inês Pereira) como também o alto clero (Barca da Glória e Auto da Feira); os homens da justiça, como o velho juiz da “Floresta de Enganos”, ou o procurador e o corregedor do “Auto da Barca do Inferno”; o próprio povo, como é evidente no Vilão e o Lavrador de “Romagem dos Agravados”, no sapateiro ladrão do “Auto da Barca do Inferno”.
Efetivamente entre as várias formas do teatro vicentino como os autos pastoris (Monólogo do Vaqueiro), moralidades religiosas (Autos das Barcas ou Auto da Alma), narrações bíblicas (Auto da Cananeia) fantasias alegóricas (Auto da Lusitânia), autos narrativos (O Velho da Horta ou D. Duardos), são as farsas que mais claramente nos fornecem um espelho satírico da sociedade e a intenção crítica do autor. Realmente, quer estas se apresentem como flagrantes da vida real (caso da Comédia de Rubena com a inesquecível cena do parto), quer tenham um propósito satírico (Quem Tem Farelos? ou Clérigo da Beira), ora sejam farsas independentes (Romagem dos Agravados), ora assumam um efeito cómico-satírico (Farsa de Inês Pereira ou Auto da Índia), de comum visam colocara ridículo os vícios ou defeitos da época. Abundam por isso nas peças vicentinas diversos tipos satíricos (clérigos, magistrados, usurários), tipos tradicionais (alcoviteira, judeu,) e com menor importância alguns tipos folclóricos, numa enorme galeria de tipos sociais ou personagens-tipo retratados, por vezes com traços de caricatura (a mulher libertina, o médico charlatão, a proxeneta, o homem enganado, etc), que nos conferem um valoroso depoimento histórico da sua época.
A intervenção irónica da Moça, no Auto da Índia, quando esta se refere a sua patroa adúltera, é elucidativa: “Quantas artes, quantas manhas/Que sabe fazer minha ama!/Um na rua, outro na cama!” . Como também é esclarecedora a fala do marido regressado da Índia sobre os objetivos esconsos dos Descobrimentos: “Fomos ao rio de Meca/pelejámos e roubámos”.

Com efeito, é no confronto com a ordem e harmonia institucional e na (contra)cultura cómica popular que mestre Gil bebe a inspiração mais incisiva para muitos das suas peças, que levam o poeta da corte a embrenhar-se e evadir-se no burlesco, na paródia (das cerimónias e dos textos sagrados) e na farsa, sob a tolerância de um poder monárquico compreensivo perante o espírito da época e aqueles tempos de um certo “mundo às avessas”, que careciam de purificação catártica.
         Porém, para além do seu pioneirismo teatral e arte literária, é acima de tudo o Gil Vicente crítico e denunciador que nos prende ainda nos nossos dias pela sua atualidade e argúcia. Com efeito, muitos dos seus tipos-sociais mantêm-se ainda hoje atuais. Curiosamente, há 500 anos como agora, reina a usura e a especulação dos grandes grupos financeiros, que inclusive sugam estados, instala-se a corrupção desenfreada, grassa o poder sem escrúpulos e desregulado por parte dos poderosos, subsiste a desconfiança na justiça, continua o deboche do clero e até a guerra santa em nome das religiões.
Crê-se também, ainda que alguns biógrafos discordem, que Gil Vicente foi também mestre de ourivesaria, autor da célebre custódia de Belém, uma vez que o rei D. Manuel nomeou “Gil Vicente, ourives da rainha” e “mestre da balança da moeda da cidade de Lisboa”. Mestre ourives ou não, Gil Vicente é sem qualquer dúvida um escritor e dramaturgo que perdura para além dos séculos.
  
Professor Aposentado da EB2,3 Gil Vicente
Álvaro Nunes


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