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CAMILO E(M) GUIMARÃES
Por António Lourenço (Professor), em 2013/01/09584 leram | 0 comentários | 114 gostam
150 anos da publicação de Amor de Perdição e Memórias do Cárcere.
Perfazem 150 anos da publicação de Amor de Perdição e Memórias do Cárcere, duas das muitas obras do insigne escritor Camilo Castelo Branco (1825-1890), cujas leituras se recomendam e que a este propósito trazem à colação este breve texto, sobre as relações entre Camilo e Guimarães.
Ora, é curiosamente, em Memórias do Cárcere, obra escrita durante o período sua prisão na Cadeia da Relação do Porto, por acusação de adultério (1860), que Camilo evoca no Discurso Preliminar alguns momentos vividos em Guimarães: “saí do Porto e fui a Guimarães não sei para quê, nem com que destino (…) Vi lá em baixo, entre florestas e jardins, o berço da monarquia, a faustosa cidade que teve academia de sábios, que rivalizam com as mais graduadas, em seu tempo, na capital. Nada me lembrou de Guimarães, ao descortiná-la por entre a abóbada do arvoredo, senão que ali haveria um leito onde eu encostasse a cabeça esvaída de febre. Nem sequer me ocorreu que as mais lindas mulheres, que um viajante francês encontrara na península, eram de Guimarães; e que, numa aldeia daqueles arrabaldes, também ao senhor A. Herculano se depararam as mais formosas”.
Contudo e apesar do elogio à beleza das mulheres vimaranenses, é sobretudo através da amizade a Francisco Martins Sarmento e da história de amor “A Viúva do Enforcado” que Camilo se liga mais estreitamente a Guimarães.

A AMIZADE COM MARTINS SARMENTO

É de facto no Discurso Preliminar de “Memórias do Cárcere” que Camilo nos fala de Guimarães e da sua relação de amizade com o vimaranense e arqueólogo Francisco Martins Sarmento: “não vi onde encostar a cabeça febril, e lembrou-me que tinha ali um conhecido, um poeta, um homem de existência amargurada. Procurei o conhecido, e achei um amigo, como usam raramente ser os irmãos, em Francisco Martins (…). Pernoitei no ergástulo da senhora Joaninha, e fui no dia seguinte para as Caldas das Taipas esperar que Francisco Martins me lá desse um leito em sua casa, e um talher à sua mesa”
 Com efeito e quando andava perseguido pela justiça, devido à acusação de adultério por parte de Pinheiro Alves, marido da sua companheira Ana Plácido, com quem passara a viver desde 1860, Camilo refugiara-se por vezes nas Taipas, numa casa próxima dos “Banhos Velhos”, alojamento que lhe arranjara Francisco Martins Sarmento, vindo posteriormente a frequentar a sua casa, o Solar da Ponte, em Briteiros, como o documenta uma carta que seu amigo lhe enviara: “eu conto ir para Briteiros no dia 8 de Junho. Se for para as Taipas veremos se é capaz de ir ver as minhas velharias”.
De facto, consta que na estância termal das Taipas, no concelho vimaranense, Camilo terá várias vezes frequentado as termas e tomaria banho nas suas águas sulfurosas em busca de alívio para a sua doença, plausivelmente durante a noite, para evitar ser reconhecido e/ou denunciado à justiça. De igual modo, como refere no citado texto, dava passeios de barco no rio Ave, com seu amigo Martins Sarmento, frequentando por vezes a Assembleia taipense: “ algumas horas do entardecer passámo-las no rio Ave, em um barquinho, revezando-nos na fadiga de remar, e cismando cada um nas suas saudades, ou nas suas esperanças, mas ambos tristes, quanto o dizia o silêncio. Na vinda do rio, estanciávamos pela Assembleia., cujo Director, o senhor Matos, nos contava com veemências de espírito civilizador os seus projectos de dar um baile
estrondoso”.Outras vezes, recorda os passeios na área, como se confirma na carta datada de 1860, enviada a seu amigo J. Vieira de Castro, que muitas vezes lhe deu guarida na Quinta do Ermo, em Fafe:” antes de ontem estive nas ruínas da antiga Citânia, cidade fabulosa, criada na mente visionária de Bernardo de Brito, que tinha o génio inventivo das necrópoles”.
Sua doença e males da cegueira, que o acabariam por conduzir ao suicídio, em 1890, foram certamente , entre outros como a fuga à justiça, os motivos que o levaram às Caldas das Taipas, como o excerto desta outra carta endereçada ao seu amigo J. Veira de Castro parece evidenciar: “antes de ontem reuni aqui três médicos. Não sei o que pensam de mim. O de Braga chama gastralgia à moléstia. O de Guimarães também. E o das Taipas, que cura há 60 anos, ainda não sabe o que é. Eu sei, e louvo a delicadeza de todos”.
Curiosamente, foi também a partir desta obra que os presos do Estabelecimento Prisional de Guimarães, no âmbito da CEC 2012 e em parceria com a Casa Museu de Camilo Castelo Branco, em Seide (V.N. de Famalicão), desenvolveram um projecto específico e alusivo, que após sessões de leitura levaram os reclusos a produzirem os seus próprios textos e curtas-metragens sobre a sua experiência da prisão.

A VIÚVA DO ENFORCADO

A ligação ao norte é uma constante na vida e obra do escritor. Com efeito, Camilo viveu parte significativa da sua vida nestas paragens e escreveu várias obras cujo espaço de acção se situa em terras nortenhas. Porém a obra intitulada “ Novelas do Minho”, publicada em 12 volumes entre 1875 e 1877, incluindo 8 narrativas, é quiçá o exemplo mais significativo da sua presença em terras minhotas. Entre elas, destacamos “A Viúva do Enforcado” que Camilo dedica “à memória do Senhor D. Afonso Henriques” e em cujo preâmbulo o autor se refere Gil Vicente, o fundador do teatro português: “ a arte da ourivesaria foi cultivada primorosamente em Guimarães no século XV. Daqui saiu Gil Vicente (…). Se eu pudesse desconfiar da infalibilidade dos linhagistas, justificá-los-ia um documento que possuo de 1455 (…). Com toda a certeza vivia então na Caldeiroa, arrabalde da vila, o sapateiro Fernão Vicente, pai de Martinho Vicente. Este, que era ourives, morava então no Casal da Laje, freguesia de Santo Estêvão de Urgezes. Aqui, provavelmente, nasceu Gil Vicente”.
Com efeito, “A Viúva do Enforcado”, que a estação televisiva SIC adaptou para uma mini-série em 1993, tem Guimarães como espaço fundamental da acção, cuja personagem Teresa de Jesus, a única filha devota do surrador Joaquim Pereira , que tinha uma fábrica de curtumes na zona dos Couros, se apaixona por Guilherme Nogueira, um jovem ourives. Uma história de amor contrariado que leva à fuga dos dois amantes para Espanha e a cruzarem-se com o par Inês e Álvaro, este último também português e refugiado no país vizinho por homicídio.
Um enredo que decididamente não pretendemos contar na íntegra e para cujo desfecho o convidamos a usufruir como leitura.
De facto, nesta novela, a realidade vimaranense do século XIX é uma presença constante. São as ruas Vale de Donas e dos Fornos (actual rua Gravador Molarinho), moradas dos dois amantes, a zona de Couros, o largo da Oliveira, o Toural , a Rua da Carrapatosa (actual rua Dr. José Sampaio) a Rua das Pretas (rua João Lopes de Faria), a Rua Sapateira (rua da Rainha D. Maria II) ou a Rua da Arrochela (Rua dos Caquinhos), entre outros espaços, mas também a sociedade da época, como é notório da referência ao Convento de Santa Clara (actual edifício da Câmara Municipal), enquanto local de recolhimento voluntário de jovens feridas de males de amor pelos “conquistadores” da época, quando refere que Teresa “via passar na Rua dos Fornos, à tardinha, ora um ora outro rapaz da famílias ilustres e abastadas” , certamente em direcção ao convento.
Mas também o património da cidade, a que não escapou à pena camiliana o tesouro da Colegiada, em especial “os cálices de prata dourada, os ceptros e a gargantilha da Senhora da Oliveira com os seus dezasseis botões de ouro esmaltado e guarnições de aljôfar, nem a custódia cinzelada com imagens , o gomil de carrancas douradas e, o bordão que a Virgem leva nas procissões”, ou a crítica à sociedade vimaranense: “entrou na loja do barbeiro Anselmo e contou que a filha do Joaquim dos Coiros fugira com um ourives mágico da rua das Donas. (Chamavam-lhe dos Coiros a Joaquim em razão da sua indústria). Dali passou à Rua de Alcobaça e disse a um sapateiro que os vira fugir às quatro horas da manhã”.
“A Viúva do Enforcado” tem Guimarães por fundo e é sobretudo mais uma história de amor da palete camiliana, que merece uma leitura. Tal como Amor de Perdição, obra-prima da vasta obra do autor, da qual não resistimos em transcrever este curto excerto, para aguçar o apetite:
“ - Onde é Monchique? – perguntou Simão a Mariana.
- É acolá, senhor Simão – respondeu, indicando-lhe o mosteiro, que se debruça sobre as margens do Douro, em Miragaia.
Cruzou os braços Simão, e viu através do gradeamento do mirante um vulto.
Era Teresa.
Na véspera recebera ela o adeus de Simão e respondera enviando-lhe a trança dos seus cabelos”.
Também na obra “A filha do Regicida”, Camilo se refere a Guimarães, para além da ourivesaria e dos curtumes:
“Que soberbo facalhão ele aqui tem! Conheço esta peça, que tenho assim uma. Destas facas só as faz Guimarães o António da Rua da Infesta, o cutileiro mais famoso do Reino”
(…)
“ – Sabe onde é Guimarães?
- Já lá estive; sei muito bem que lá fazem boas facas e tesouras.
- E boas colchas e toalhas.”
Assim era Guimarães do século XIX, na perspectiva camiliana: local de história e rico património, terra de homens ilustres e mulheres bonitas, lugar de indústria e trabalho, berço da pátria e da amizade.
Ler Camilo é (quase) obrigatório.

Professor Álvaro Nunes


 

  
 


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