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CANTAR AMÁLIA
Por Conceição Páscoa (Professora), em 2020/06/24579 leram | 0 comentários | 108 gostam
Comemora-se este ano o centenário do nascimento de Amália Rodrigues 1920-2020.
Amália da Piedade Rebordão Rodrigues, nome completo de AMÁLIA RODRIGUES, Rainha do Fado e voz de Portugal, está novamente viva entre nós, a propósito do centenário do seu nascimento (23 de Julho de 1920), após duas décadas do seu falecimento (6 de Outubro de 1999).

Ora, falar da Amália que cantou os grandes poetas portugueses, é o objetivo deste texto. De facto, Amália deu voz à poesia cultivada desde os tempos medievais, como Mendinho (“Cantiga de Amigo”), Pêro de Viviães, ou D. Dinis.

“Ai flores do verde pino
Dizei que novas sabedes
Da minha alma, cujas sedes
Ma perderam no caminho”

Canto que se estendeu aos poetas seiscentistas como Bernardim Ribeiro (“Malaventurado”) ou João Roiz Castelo Branco:

“Senhora, partem tão tristes,
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém”

Igualmente, uma voz que cantou também por Camões, como no soneto “Erros meus, má Fortuna, Amor ardente” ou, entre outros, os vilancetes “Perdigão” e “Lianor”: “Descalça vai para a fonte/Leanor pela verdura;/vai fermosa e não segura”.
No entanto, Amália centraria fundamentalmente o seu reportório lírico nos poetas do século XX, embora haja também interpretado a autores românticos como António Feliciano de Castilho, como ocorreria com a cantilena de tom popular “Os treze anos”:

“Já tenho treze anos
Que os fiz por Janeiro
Madrinha, casai-me
Com Pedro gaiteiro.

Realmente, seria entre os poetas contemporâneos e especificamente do século XX, que Amália mais se fincaria. Assim, canta António Feijó (“Fado Alfacinha”), Júlio Dantas (“Novo fado da Severa”), ou ainda Afonso Lopes Vieira (“ Romance”), Almada Negreiros (“Rondel do Alentejo”) ou Guerra Junqueiro (“As penas”).
Mas também Sebastião da Gama (“Nasci para ser ignorante”), Sidónio Muralha (“Raízes/Amantes separados”), e Alexandre O’Neill (“Formiga bossa nova/Gaivota”)
 Ademais, a fadista dá voz, para além dos consagrados vates da sua terra, aos poetas brasileiros, como Vinicius de Moraes (“Saudades do Brasil”) e Cecília Meireles , como em“Naufrágio”:

“Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar
e despois, abri o mar com as mãos
para o meu sonho naufragar”

Formas que, paralelamente à sua matriz popular do fado castiço, como os temas “Foi Deus”, “Tudo isto é fado”, pois o “fado é tudo o que eu digo/Mais o que eu não sei dizer”, conciliaria com caminhos inovadores, nomeadamente o “fado canção”, acompanhado por orquestra de cordas.
Porém, quer num registo quer noutro, não há alterações significativas em relação à tradição popular, que tem geralmente Lisboa por protagonista, tema e cenário: “és o castelo da proa/da velha nau Portugal”. Lisboa dos seus bairros, nos santos populares e da vida airada, ou dos amores entre varinas e marujos.
“Fado Português”, assim se intitula o poema de José Régio cantado por Amália, dilucida claramente as suas raízes naturais do seu povo marinheiro, cantador triste do seu fado:

“O fado nasceu um dia,
quando o vento mal bulia
e o céu o mar prolongava,
na amurada dum veleiro
no peito dum marinheiro
que, estando triste, cantava”.

Efetivamente, apesar de balizado em tópicos como o melancólico destino, o amor, a paixão, o ciúme, o abandono e a saudade, a que juntam linhas temáticas como o sofrimento, a esperança desenganada, o despeito ou a separação, os fados de Amália transfiguram pela mediação da sua voz versos banais e literários em pujantes momentos de interioridade poética. Canto de versos de sina desventurada, como são o caso destes, que constituem a última quadra do “Fado Hilário”:

Já não posso ser contente
Trago esperança perdida
Ando perdida entre a gente
Não morro nem tenho vida.

Seriam porém Pedro Homem de Mello e David Mourão Ferreira os principais poetas da voz de Amália, que teve em Alain Oulman e Frederico Valério os seus principais compositores.
Do primeiro recordamos a capital do Alto Minho em fados como “A Minha terra é Viana” ou “Havemos de ir a Viana” , mas também “Entrega” e “Olhos Fechados”, “Prece” e “O Rapaz da camisola verde”, ou ainda “Fria Claridade”. Mas, entre os demais, “Povo que lavas no rio”, um hino ao povo e à sua força:

“Povo que lavas no rio
Que talhas com o teu machado
As tábuas do meu caixão
(…)
Pode haver quem te defenda
Quem compre o teu chão sagrado
Mas a tua vida não”

Por seu turno, do segundo (David Mourão-Ferreira), recordamos Lisboa em “Madrugada de Alfama” e “Maria Lisboa”, ou ainda em “Barco Negro” e “Libertação”. Outrossim, “Primavera” e “Sombra, entre vários outros como “Abandono/(Abaixo) O Fado de Peniche”, alusivo aos presos políticos:

“Por teu livre pensamento
foram-te longe encerrar
Tão longe que o meu lamento
Não te consegue alcançar
E apenas ouves o vento
E apenas ouves o mar.

Levaram-te a meio da noite
a treva tudo cobria
Foi de noite uma noite
De todas a mais sombria
Foi de noite, foi de noite
E nunca mais se fez dia”.

José Carlos Ary dos Santos seria outro poeta cantado pela fadista, que canta “Alfama”, “Amêndoa Amarga” “Meu amigo está longe”, ou “Rosa Vermelha”: “trago uma rosa vermelha/não preciso de mais nada”.
 Um canto de maior intenção social e uma lírica amorosa de forte expressão metafórica, que canta Lisboa e a sua vida.
 Mas Amália canta também Manuel Alegre, que conheceria nos anos 70 e a consagraria como “a voz da alma portuguesa e de todos os versos”.
Deste modo, Amália interpretaria também poemas de Alegre como “Trova ao vento que passa” e a expressão do exílio, bem como o amor de “Meu amor é marinheiro”:

“Meu amor é marinheiro
quando suas mãos me despem
é como se o vento abrisse
as janelas de meu corpo”.

Assim, pela voz dos poetas consagrados e/ou populares, bem como através de poemas da sua própria lavra, Amália canta sobretudo a sujeição da condição humana ao destino (“triste sina”) com longa história na literatura portuguesa.

No fundo, como disse Jorge Sampaio, ex-Presidente da República, uma figura singular que ” fez da sua voz uma pátria, um bilhete de identidade dela e nosso”.

ÁLVARO NUNES


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