21 DE MARÇO -DIA MUNDIAL DA POESIA | ||
Por Carla Manuela Mendes (Professora), em 2019/03/25 | 208 leram | 0 comentários | 59 gostam | |
21 de março é o Dia Mundial da Poesia, uma data proclamada na 30ª. Conferência Geral da UNESCO, em16 de dezembro de 1999, com o objetivo de vincar a importância da reflexão sobre o poder da linguagem e seu vigor criativo. | ||
Ora, em 2019, data do centenário do nascimento de Sophia de Melo Breyner Andresen, o Dia Mundial da Poesia só poderia ter um nome: Sophia Com efeito, Sophia ocupa no panteão da lírica portuguesa um lugar cimeiro e singular, em cujos poemas perpassa o amor da vida e uma intensa exigência moral, plasmados em símbolos marinhos e palavras denunciadoras da realidade, plenas de sinergia mágica. Igualmente, uma poesia sem dependência de escolas ou grupos literários, que aspira a assumir um compromisso com o mundo do seu tempo, sobrelevando-se como força transformadora. De facto, a problemática do (seu) tempo e o compromisso com a realidade, no qual a poesia se assume como forma de luta contra a injustiça, a mentira e a corrupção, é um dos vetores essenciais da sua obra, que, centrada na sensibilidade ao sofrimento do mundo e na denúncia da opressão e da degeneração, visa provocar a incomodidade interior e o nosso empenhamento. Estão neste caso, entre muitos outros, o poema “Data”: (…) “Tempo de covardia e tempo de ira Tempo de mascarada e de mentira Tempo que mata quem o denuncia Tempo de escravidão” (…) Ou, ainda, “Guerra ou Lisboa 72”, poema de denúncia da guerra colonial: “Partiu vivo jovem forte Voltou bem grave e calado Com a morte no passaporte Sua morte nos jornais Surgiu em letra pequena É preciso que o país Tenha a consciência serena”. Efetivamente, a podridão e a degradação pessoal e social são frequentemente denunciadas por Sophia. O poema “As Pessoas Sensíveis”, recheado de citações e alusões bíblicas é um exemplo ilustrativo dessa crítica deliberada à hipocrisia e duplicidade das pessoas e a prova cabal dessa postura denunciatória: “As pessoas sensíveis não são capazes De matar galinhas Porém, são capazes De comer galinhas” (…) “Ganharás o pão com o suor do teu rosto” Assim nos foi imposto E não: “Com o suor dos outros ganharás o pão”. (…) Perdoai-lhes Senhor Porque eles sabem o que fazem” Há portanto na sua poesia um apelo e incentivo à luta sem violência, que passa pela frontalidade e coragem do ser e pela integridade moral, que o poema “Porque” bem dilucida: “Porque os outros se mascaram, mas tu não Porque os outros usam a virtude Para comprar o que não tem perdão Porque os outros têm medo, mas tu não. Porque os outros são túmulos caiados Onde germina a podridão. Porque os outros se calam, mas tu não” (…) Quebrar corajosamente o silêncio contra a podridão e derrotar os abutres, simbolicamente associados à degradação e ao menosprezo, é por conseguinte a missão desta sua poesia: “O velho abutre é sábio e alisa as suas penas A podridão lhe agrada e seus discursos Têm o dom de tornar as almas mais pequenas” Missão que Sophia acabaria por vivenciar e rejubilar, como bem expressa o seu poema “25 de Abril”, após a queda do bando do “Velho Abutre”, que se crê retratar Salazar: “Esta é madrugada que eu esperava O dia inicial inteiro e limpo Onde emergimos da noite e do silêncio E livres habitamos a substância do tempo”. Um novo tempo para o qual, Sophia avisaria preventivamente será necessário manter a vigilância e o sentido crítico: “Nesta hora limpa de verdade é preciso dizer a verdade toda/Mesmo aquela que é impopular neste dia em que invoco o povo/Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio/E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade”. Por isso, alerta e acusa: “Com fúria e raiva acuso o demagogo E o seu capitalismo das palavras” No entanto, para além desta vertente interventiva, Sophia espraia se também por outras ondas poéticas e temáticas. Assim, na sua poesia destaca-se também a presença misteriosa e obsessiva do mar: “Quando eu morrer voltarei para buscar/Os instantes que não vivi junto ao mar” – escreve Sophia no seu poema “Inscrição” O mar da sua praia da Granja, local onde passaria as férias de infância e adolescência e mais tarde, o mar do reino dos Algarves, na sua vida adulta, surge assim na sua poesia como símbolo da dinâmica da vida, donde tudo vem e regressa, como lugar de vida e morte. De facto, o mar, a praia, a casa, os jardins são suportes da demanda da perfeição, pureza e harmonia: “Ao longe por mim oiço chamando/A voz das coisas que eu sei amar/E de novo caminho para o mar”. Evidente, portanto, na poesia de Sophia o tratamento poético da natureza, geralmente em oposição à cidade, enquanto falso paraíso artificial conspurcado. Uma natureza plena de autenticidade, conotada com os elementos primordiais, com a qual o sujeito poético se deseja fundir: “De todos os cantos do mundo Amo com um amor mais forte Aquela praia extasiada e nua Onde me uni ao mar, ao vento e à lua”. Mas também o oceano e as viagens marítimas rumo ao Oriente, que em Sophia, mais do que um espaço físico, funciona como símbolo de ordem, pureza, originalidade e da magia primitivas: “Navegavam sem o mapa que faziam (Atrás deixando conluios e conversas Intrigas surdas de bordéis e paços) Os homens sábios tinham concluído Que só podia haver o já sabido: Para a frente era só o inavegável Sob o clamor de um sol inabitável Indecifrada escrita de outros astros No silêncio das zonas nebulosas Trémula bússola tateava espaços Depois surgiram as costas luminosas Silêncios e palmares, frescor ardente E o brilho do visível, frente e frente” Um poema que é também de exaltação da vigem dos descobridores que intertextualmente se aproxima da epopeia camoniana, contrapondo o saber livresco dos “homens sábios” ao “saber da experiência feito”, em clara rutura com a tradição vigente. Sophia é também na sua obra lírica um mar de poesia, simultaneamente revolto e sereno. Texto de Álvaro Nunes | ||
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