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GUIMARÃES HÁ 75 ANOS: O CORTEJO DE MIL CARROS
Por Carla Manuela Mendes (Professora), em 2018/10/24241 leram | 0 comentários | 45 gostam
Em 30 de outubro de 1943, a Europa e o mundo estavam em guerra. Viviam-se tempos difíceis, aos quais Guimarães não estava imune. Grassava a fome, a carestia da vida e o mercado negro marcavam regras e o racionamento e as carências imperavam.
Mas, perante as vicissitudes dessa época, Guimarães responderia solidariamente. Tudo começou com um texto da cronista Maria Eduarda, no jornal “O Comércio de Guimarães” de 30 de julho e o desafio lançado:

“Porque não organizar, entre nós, o Cortejo de Oferendas?”

Dito e feito, o movimento avançou e prontamente seria constituída uma comissão para o efeito, formada pelo arcipreste e outras individualidades vimaranenses, que contaria com o apoio dos párocos de todas as freguesias. Deste modo, num crescendo de adesões e despique entre freguesias, decidiu-se avançar com o cortejo a 30 de outubro, combinando-se que metade do produto angariado reverteria para a Santa Casa da Misericórdia de Guimarães e a outra metade para as instituições assistenciais, como o Asilo de Santa Estefânia, Casa dos Pobres, Asilo do Campo da Feira, Oficinas de S. José e Creche da Ordem Terceira de S. Francisco.
  
Ora, o cortejo superaria todas as expectativas. Efetivamente, em vez dos 500 carros previstos, cerca de mil carros desfilariam com as suas oferendas, entre a a estação do caminho-de-ferro e o antigo Convento dos Capuchos, local onde se instalava na altura o Hospital da Misericórdia.
Sem dúvida uma manifestação de solidariedade, partilha bairrista, que nem as dificuldades dos tempos da guerra mundial dissuadiram e que seria assim reportada no Comércio de Guimarães de 5 de novembro:

“CERCA DE MIL CARROS FORMARAM “O CORTEJO DAS OFERENDAS”, que no passado sábado escreveu uma página vibrante da nossa Terra.
Escrevemos ainda sob a emoção grata da passagem da mais enternecedora Jornada de Caridade a que temos assistido.
Não fora a nossa missão, que nos impõe o dever de gravar no papel o que sentimos e vimos, e preferiríamos esconder no coração o sentimento que nos invade a alma e fez humedecer os olhos!
Há espetáculos que passam como uma visão! Vêem-se, mas não se descrevem!”.
(…)

Porém, a necessidade de “transmitir aos vindouros a página doirada que o concelho de Guimarães lhes lega”, acaba por impulsionar o repórter a cumprir a sua missão e escrever:

“ Doze horas. A Tribuna de honra, erguida junto do Candeeiro monumental (atual Largo 25 de Abril, no topo o Toural voltado a sul) está quase repleta.
(…)
O povo comprime-se e contorna o largo central, e as ruas por onde tem que passar o desfile, estão embandeiradas, pendendo das janelas, repletas de senhoras, lindas colgaduras.
(,,,)
São perto de 13 horas. Repicam sinos; estralejam morteiros, e ao cimo da Avenida Cândido dos Reis, põe-se em marcha o Cortejo.
O aspeto é surpreendente, de luz e emoção!
(…)

E começa então o repórter a descrever os sucessivos carros do desfile e as suas oferendas: tecidos, atoalhados e cobertores das nossas fábricas, lenha, vinho, géneros agrícolas e “gaiolas com coelhos de boa casta e galinhas, muitas galinhas, dizem-nos que na totalidade, mais de um milhar!”.
(…)
Muitos carros com dísticos (“Quem dá aos pobres empresta a Deus”) e outros ornamentados.

A freguesia de S. João de Ponte abre com um carro de cereais, seguido de 27 que conduzem lenha, feijões, aves, legumes, etc, etc. A Companhia de Fiação de Campelos mandou-nos, além de outras ofertas, um carro de batatas, cebolas e aves.
Segue mais um dístico: - S. João de Ponte: Presente!

“É agora Urgezes que passa em frente da Tribuna. Abre a sua representação um carro triunfal sobrepujado por uma linda figura que representa a Rainha Santa Izabel. Traz um letreiro que diz: levo rosas!, e à passagem pela Tribuna, abre o regaço e lindas pétalas de rosas juncam o solo! Ouvem-se palmas. No carro, de guarda de honra à figura, um rapaz da M.P., fazendo a saudação. Rodeando-os, açafates de boroas de pão, cobertas de rosas. Um encanto!”
(…)
Vem agora Aldão, fidalga, com lindos carros enfeitados a primor (…) No fueiros de um carro de colmo, um montão de notas de 20,00 e 50,00.
(…)
É agora Silvares que avança. Precede as ofertas, empilhadas em 23 carros, um lindo touro avaliado em 900 escudos. Silvares brilha a grande altura (…) A Casa Sendelo ofereceu 400.00 em dinheiro, a Casa Ardão 300,00 ; a mesma freguesia teve casas 1.000.00 (…)”
 
E mais adiante:

“Lá vem Nespereira; abre as ofertas um carro todo enfeitado com tecidos, montões de tecidos: - agasalho e limpeza para os pobres; segue-o o numeroso grupo de raparigas conduzindo aves. O carro e o grupo são palmeados. Seguem mais carros, todos com tecidos, enfeitados com vistosas colchas. Um dos carros trazia, no tejadilho uma linda gaiola, com um nédio cabrito. Um carro trazia, de um lado, uma janela, com cortinas brancas e um craveiro na frente”.
(…)

E assim prossegue a descrição de muitos dos cerca de mil carros de oferendas, que, apesar da chuva aparecida, “o entusiasmo não esfria “. Porém, como afirma o repórter a dado passo “o cortejo levou cinco longas horas a passar” e portanto “não era possível pois, fazer uma descrição completa” , pelo que reconhece que “há freguesias que não pudemos anotar, e outras que pouco dizemos”.

Porém, um cortejo que teve até honras para o desempenho, em entreacto, do “Auto das Oferendas”, uma peça expressamente escrito para este fim pelo poeta J.M. Pinto de Almeida, que acompanharia o carro de Lordelo

“ … Vamos chegando ao Toural
ao centro desta cidade
- No Berço de Portugal
Embala-se a Caridade!
(…)
Ó Senhora da Oliveira
Lordelo se recomenda
Eu sou a vossa caseira,
Venho pagar-vos a renda.

E perdoe a Senhoria
não trazer mais, que não posso;
com o calor que fazia,
nem chegou para o pão nosso.
(…)
Enquanto houver moinho
grão a cair da tremonha
a Terra Santa do Minho
é uma cantiga risonha…”.

Certamente um episódio da vida vimaranense que muitos dos nossos avós terão vivenciado e que provavelmente se recordarão como um inesquecível exemplo e momento de filantropia, apesar de todas as dificuldades da vida.

Álvaro Nunes.


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