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50 ANOS DO CANTO E AS ARMAS
Por António Loureiro (Professor), em 2017/03/27959 leram | 0 comentários | 170 gostam
Este ano perpassa o cinquentenário da publicação da obra de Manuel Alegre “O Canto e as Armas”, publicada dois anos após “Praça da Canção”, oportunamente abordado nestas páginas.
Cantado por várias vozes, como Adriano Correia de Oliveira e José Afonso, recitado à socapa por muitos, nos tempos da ditadura e censura, por vezes com a guitarra de Carlos Paredes em fundo, a obra “O Canto e as Armas”, constitui um projeto atual de luta pela liberdade e democracia, enquanto canto lírico conducente a “mudar a vida”, como queria Rimbaud ou a “transformar o mundo”, como Marx profetizara.
O “Canto e as Armas” é por conseguinte mais uma experiência mágica da demanda e da errância do sujeito poético na busca dessa nova vida e novo mundo, ante uma época de mordaça e miséria. Uma poesia assumidamente engajada à expressão literária da revolta, subversiva e adjetivada de vigor revolucionário, na qual o poeta se assume como um Ulisses português do seu/nosso tempo (“Como Ulisses te busco e desespero”), que definitivamente procura aniquilar D. Sebastião (“É preciso enterrar El-Rei D. Sebastião”) enquanto efabulação evasiva e mitificada da salvação messiânica e exterior e que em contraposição a essa visão busca um país acordado, cantado em “Poemarma”:
“Que o poema corra salte e pule
que seja pulga e faça cócegas ao burguês
que o poema se vista subversivo de ganga azul
e vá explicar numa parede alguns porquês.
(…)
Que o poema seja microfone e fale
uma noite destas de repente às três e tal
para que a lua estoire e o sono estale
e a gente acorde finalmente em Portugal.
(…)
Que o poema assalte esta desordem ordenada
que chegue ao banco e grite: abaixo a pança!
que faça ginástica militar aplicada
e não vá como vão todos para França” .

Um “poemarma” que “seja um novo Infante D. Henrique/voltado para dentro” e que diga: “ o longe é aqui”!
No fundo, um canto que utiliza a palavra poética como arma de mudança e cidadania participada, no seu país e seu tempo (1967), como desde logo o poema inicial “O Canto e as Armas” dilucida como missão deste poeta da Tribo e guardião do fogo sagrado:

“Canto as armas e o Tempo.
As minhas armas, o
meu tempo. E desarmado
pergunto à flor, pergunto
ao vento: vistes lá
o meu país? E o meu
país está nas palavras.
Porque a tribo me disse:
Tu guardarás o fogo.
E por armas me deu
Esta espada, este canto.”
 
Obviamente, a exortação para um combate diferente dos saudosos tempos e mitos de outrora, perante as novas lutas alternativas a serem travadas aqui, agora (e sempre):
“Não fica nos terraços da Saudade
Não fica em longes terras
Fica exatamente aqui,
tão perto que parece longe”.

“Não mais Alcácer Quibir/ É preciso voltar a ter uma raiz/um chão para lavrar/um chão para florir/ É preciso um país”, é por conseguinte o canto do seu tempo, num tempo em que a juventude do seu país lutava ingloriamente na guerra colonial, em continuação de Alcácer Quibir.
Com efeito a ideia que “Alcácer Quibir é ir morrer/além do mar por coisa nenhuma” é reiteradamente cantada pelo sujeito poético, que deseja navegar em novos mares e alcançar novas descobertas neste “país por achar neste país”:

“Porque tiveste o mar nada tiveste.
A tua glória foi teu mal.
Não te percas buscando o que perdeste.
Procura Portugal em Portugal”.
 De facto, embora afirme que “sou metade camponês, metade marinheiro ”, o nosso Ulisses lusitano encara o mar como um caminho de perdição e por isso, contrariamente à epopeia camoniana, canta no poema “Lusíada exilado”:
 “Sou este camponês que foi ao mar
lavrar as ondas e mondar a espuma
e andou achando como a vindimar
terra plantada sobre o vento e a bruma”.

Desventura que esta passagem do poema “Peregrinação”, corrobora:

“Porque nenhum Brasil foi teu. Nenhuma
ilha a tua. Em cada barco terra a terra
perdeste a pátria por achar. E a guerra a guerra
por tuas armas te perdeste. E o mais foi espuma”

Manuel Alegre, o Ulisses português e poeta da tribo lusíada, que em desencanto canta “já em Portugal estrangeiros somos”, deseja assim que seu canto seja arma. Poder armado que passa fundamentalmente pelas nossas mãos, como se lê no belo soneto “As Mãos”:



“Com as mãos se faz a paz e faz a guerra.
Com as mãos tudo se faz e se desfaz.
Com as mãos se faz o poema – e são de terra.
Com as mãos faz a guerra – e são a paz.

Com as mãos se rasga o mar. Como as mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.
   
E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor cada cidade
Ninguém pode vencer estas espadas:
Nas tuas mãos começa a liberdade”.

 Passará portanto nas nossas mãos , enquanto capacidade de agir, cantar esta sua “Letra para um hino”:

“É possível falar sem um nó na garganta
É possível amar sem que venham proibir
É possível correr sem que seja a fugir.
Se tens vontade de cantar não tenhas medo: canta.

É possível andar sem olhar para o chão
É possível viver sem que seja de rastos
Os teus olhos nasceram para olhar os astros.
Se te apetecer dizer não grita comigo: Não.

É possível viver de outro modo.
É possível transformares em arma a tua mão
É possível o amor. É possível o pão
É possível viver de pé.

Não te deixes murchar. Não deixes que te domem
É possível viver sem fingir que se vive
É possível ser homem
É possível ser livre livre livre.”

De facto, sabemos hoje, cinquenta anos depois, que muitas conquistas e liberdades foram possíveis. Porém, Ulisses continua a sua odisseia errante e (ainda) não chegou a Ítaca

Texto escrito por,
Álvaro Nunes


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