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RAUL BRANDÃO E GUIMARÃES
Por António Loureiro (Professor), em 2017/01/03717 leram | 0 comentários | 131 gostam
Raúl Brandão (1867-1930), nascido no Porto, chegou Guimarães em 1896, para iniciar a sua carreira militar no Regimento de Infantaria nº. 20, que aqui estava aquartelado no “casarão negro e em osso” do Paço dos Duques de Bragança.
RAUL BRANDÃO E GUIMARÃES
Raúl Brandão (1867-1930), nascido no Porto, chegou Guimarães em 1896, para iniciar a sua carreira militar no Regimento de Infantaria nº. 20, que aqui estava aquartelado no “casarão negro e em osso” do Paço dos Duques de Bragança.
Mas, para além do início da sua carreira militar, que largaria com o posto de major, em 1911, a cidade vimaranense deu-lhe também a companheira da sua vida Maria Angelina, com quem casaria em março de 1897 e que com ele viveria apaixonadamente, desde 1903 na Casa do Alto, em Nespereira. Aliás e em grande cumplicidade, seria também em parceria com a esposa que escreveria o seu último livro “Portugal Pequenino”, obra infanto-juvenil, cujos protagonistas, Pisca e o Ruço, nos levam a viajar pelo nosso país.
Viagem de uma vida de escritor e jornalista que terminaria também em Guimarães, em 1930, onde está sepultado e repousa, no cemitério da Atouguia.

Todavia, na obra do escritor, Guimarães é metaforicamente a “vila” brandoniana, mais simbólica que real, que serve de cenário às suas narrativas ficcionais mais importantes, em especial “A Farsa” (1903) e “Húmus” (1917). Uma “vila” que Jacinto Prado Coelho configura como “uma abreviatura do mundo”, cujos habitantes representam “a humanidade inteira”.
De facto, ainda que indeterminada e impossível de localizar espacialmente, a “vila” brandoniana é delineada com olhos em Guimarães, como logo se depreende da parte inicial da obra “A Farsa”:

“Uma nuvem desce da serra: arrastam-se rolos pelas encostas pedregosas e depois as baforadas espessas abafam de todo a vila. E noite, cerração compacta, névoa e granito, formam um todo homogéneo para construírem um imenso e esfarrapado burgo de pedra e sonho. Pastas sobre pastas de nuvens álgidas, que a noite transforma em crepes, amontam-se na escuridão. O granito revê água. E sob a chuva ininterrupta, sob as cordas incessantes, a vila envolta na treva glacial, parece lavada em lágrimas …
- Ai que ma levam!
É o único grito que irrompe do escuro, lúgubre, aflitivo, raspado. Depois o silêncio, a mudez concentrada da noite a nuvem negra coalhada sobre as ruínas da vila toda lavada em lágrimas. Só aquele grito ressoa na praça solitária. A torre da Sé deformou-se: o granito aliado à névoa de mistura coma noite, abriram arcarias, alongaram portas e fizeram dos restos da muralha antiga um tropel caótico.
(…)
Uma luzinha alumia Cristo aflitivo na abóbada de pedra sustentada por quatro arcos ogivais (…)
Adivinha-se a porta da igreja, uma golfada de tinta, e o telingue-telingue eterno duma fonte – o choro baixinho daquela escuridão cerrada”.

São pois identificáveis nestas passagens a Penha, a praça da Oliveira e a Igreja da Colegiada, com a sua torre e fonte, que em tempos lá se encostava e existia; e até o denominado Padrão do Salado, sustentado “por quatro arcos ogivais”.

Contudo, é na correspondência e especificamente numa carta enviada ao seu amigo Columbano Bordalo Pinheiro, que Raúl Brandão, fala do berço da nação:

“Guimarães é uma cidade perfeitamente Idade Média, com palácios, igrejas e casas minhotas curiosíssimas. Tudo isto tem um aspecto que você deve gostar muito. Os arredores, a paisagem, até nos dias de chuva, são admiráveis. Lindas raparigas e vinho verde magnífico a cinco mil réis a pipa; acrescentando isto, fica você percebendo que esta terra basta para a minha felicidade. Estou, portanto, contente. Não vejo à minha volta senão gente feliz, corada, palreira (…). Aluguei uma casa fora da cidade com um enorme quintal e um telheiro. De lá, nestas últimas tardes de calor, amodorrando olho a Penha - uma montanha eriçada de penedia e as árvores que separam os campos , cobertas de vinho. Trabalho da uma às quatro e meia. Depois passeio, como e durmo. Uma vida de abade.”

A cidade vimaranense é ainda referenciada como tema de escrita numa obra coletiva que assinou com D. João da Câmara e Maximiliano, com o título “Pátria Portuguesa”, editado em 1906 e recordada nos desfiles militares, aquando da romaria de S. Torcato e da procissão de S. Jorge, conhecida por procissão do caga-ratos:

“Estou a ver-me na Oliveira (…) Era o simpático boneco que aparecia lá no fundo, em cima do cavalo, de lança, elmo e plumas, seguido por todas as alimárias que os fidalgos de Guimarães mandavam naquele dia para acompanhar” (…)
 
No entanto, é no capítulo III na obra “A Farsa” que Guimarães surge com toda a clareza, na noite de 5 de dezembro, véspera de S. Nicolau, num dos números mais emblemáticos das Festas Nicolinas, as posses:

“ Véspera de S. Nicolau e toda a populaça na rua.
 (…)
Os tambores rufam sem interrupção – dir-se-ia que o planeta estoira farto de sonho inútil – e do nada, iluminado a vermelho, brotam bamboleando e somem-se logo na aparência da realidade, o arco medievo e a mole rendilhada da Sé, para depois a novo clarão ressurgirem só por momentos com a abóbada, o Cristo, as colunatas e o fantásticos recortes de muralha e sombras que tomam corpo e se amontoam nos vastos fundos onde o clarão não penetra.
(…)
A turba avança, a praça transborda: há milhares de bocas que gritam ao mesmo tempo:
- S. Nicolau! S. Nicolau! …
É, na véspera da festa, o dia das posses, em que desde os tempos imemoriais certas famílias estão na obrigação, que a populaça não perdoa nem perde, de dar, uns castanhas, outros lenha, vinho, pão, uma árvore.
(…)
Por fim um jorro humano estaca diante dum prédio emudecido e escuro, os clamores e a música cessam e a bicha, depois de ondular, atende ansiosa.
(…)
Diante do prédio, no silêncio e na noite, três vezes chamam:
- Cucúsio! Cucúsio! Cucúsio!
(…)
Sente-se abrir o postigo do prédio e uma voz comovida responde afinal ao apelo:
- Pronto, meus senhores, cá está o Cucúsio! …
E logo assoma ao peitoril do primeiro andar, alumiado pela chama vacilante da vela, um monstruoso traseiro.
(…)
Um excelente relato de Guimarães no início do século XX, cujo impressionismo merece uma leitura integral.

Professor Álvaro Nunes























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