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Um mar de Poesia
Por António Loureiro (Professor), em 2013/05/091916 leram | 0 comentários | 164 gostam
Texto escrito pelo Professor Álvaro Nunes, antigo responsável pelo nosso Jornal do Agrupamento " Novas do Gil".
O texto escrito vem de encontro ao Tema do Nosso Projeto - O Mar -
“Da minha língua vê-se o mar” disse Vergílio Ferreira. Com efeito, “Heróis do Mar” consagrados no hino nacional, desde 1890, epicamente cantados na obra “Os Lusíadas” de Camões pelas suas “armas e barões assinalados/Que da Ocidental praia Lusitana/Por mares nunca dantes navegados/Passaram para além da Taprobana”, Portugal, como “um anfiteatro levantado em frente do Atlântico que é uma arena”, como o escreveu Oliveira Martins na sua História de Portugal, possui nas veias de seu povo esse instinto de gladiador e essa saga secular de luta contínua com o mar, paradoxalmente nosso caminho de sofrimento e derrota, mas também de poder e glória: “Ó mar salgado, quanto do teu sal/São lágrimas de Portugal (...) Deus ao mar o perigo e o abismo deu/Mas nele é que espelhou o céu” – Fernando Pessoa, in Mar Português (Mensagem).
Obviamente, as emoções do mar na nosssa literatura e na poesia em particular, são por isso marcas indeléveis na nossa vida quotidiana, ora desde os tempos mais remotos ora nos gestos mais simples das nossas vivências, como o bem expressa David Mourão Ferreira, em Ócios de Ofício: “também, nos estendais da sua roupa simples , ao secar ao sol o enxoval, que sempre tem pronto para novas núpcias com o Mar”. Noivado ou casamento que Cesário Verde sente nos acossa no seu poema Sentimento dum Ocidental, como rumo doloroso, no seu poema Sentimento dum Ocidental:“ a Dor Humana busca os amplos horizontes/E tem marés de fel, como um sinistro mar”.
Remonta efectivamente aos primórdios da nossa língua e história esta nossa relação com o mar. De facto, desde a lírica galaico-portuguesa e da poesia medieval trovadoresca, que as “ondas do mar de Vigo” cantadas por Martin Codax angustiam este povo de partida, nem sempre com chegada marcada (“Ondas do mar de Vigo/Se viste meu amigo!/E ai Deus, se verrá cedo”). Mar que foi também cobiça (“Fomos ao rio de Meca/Pelejamos e roubamos”) como o refere mestre Gil Vicente no Auto do Índia e, outrossim, vontade de ir longe, quase um desígnio de transpor o além, como o poema pessoano D. Dinis, inserido na Mensagem o (pres)sente, no pinhal de Leiria: “o plantador de naus a haver/(...) busca o oceano por achar/E a fala dos pinhais, marulho obscuro/É o som presente desse mar futuro/É a voz da terra ansiando o mar”.
É este desígnio, que Fernando Pessoa retoma na obra Mensagem, concretamente no poema Infante e que em seu entender emana de uma vontade divina, que estará fadado no nosso âmago: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce/Deus quis que a terra fosse toda una/Que o mar unisse, já não separasse”. Pressuposto que por certo o leva, pela voz voz do marinheiro, o homem do leme, em nome do seu rei, a enfrentrar o Mostrengo e afirmar-lhe: “Sou um povo que quer o mar que é teu (...) aqui ao leme sou mais do que eu”. Mensagem de determinação que, como adiante especifica no poema Padrão, leva ao domínio dos mares e ao Mar Português: “o mar com fim será grego ou romano/ o mar sem fim é português”. Mar que Pessoa, através do seu heterónimo Álvaro de Campos, canta também em Ode Marítima, provavelmente um dos mais extraordinários poemas da poesia moderna ocidental.
Também na poesia mais recente o mar nos agita em suas ondas como temática da cosmovisão e mundividência lusitana. Miguel Torga, por exemplo, nos seus Poemas Ibéricos, invectiva o mar de “fingido lameiro, a soluçar/(...) enganosa sereia rouca e triste”, que acusa de traição (“Foste tu que nos veio namorar/E foste tu depois que nos traíste”), bem como um fascínio persecutório e intemporal :“e quando terá fim o sofrimento!/E quando deixará de nos tentar/o teu encantamento!”.
Em similar esteira e diapasão, identificando-se com Ulisses em demanda da sua terra querida, Manuel Alegre transmite-nos em “Um barco para Ítaca”, quer no exílo quer da decepção do regresso à pátria, essa dor de seu povo dividido entre as raizes e o mar: “Sou metade camponês metade marinheiro”, diz na Praça da Canção, aspecto que repega em O Canto e as Armas: “sou este camponês que foi ao mar/lavrar as ondas e mondar a espuma/e andou achando como a vindima/terra plantada sobre o vento e a bruma”.
Contudo, Alegre contrariamente a Pessoa que cultiva o apelo do “proibido azul distância”, combate os mitos que nos fazem apetecer o Longe e exorta a procurar o Perto, as raízes: “porque tiveste o mar nada tiveste/A tua glória foi o teu mal/Não te percas buscando o que perdeste/Procura Portugal em Portugal” (O Canto e as Armas). Porém, após a busca, o regresso a Ítaca (leia-se Portugal) que se revela de desencanto, inicia-se um segundo exílio, em busca de uma nova Ítaca sonhada: “O teu destino é nunca haver chegada/o teu destino é outra Índia/E a nova nau lusíada apontada/A um país que só há no verbo achar” (poema Portugal da obra Chegar Aqui).
Parte-se assim para uma nova viagem sem regresso, que, como alma errante, o poeta direcciona ao seu interior, numa odisseia incessante em que “não há senão essa busca” por esse país que não há, ou existe apenas na língua portuguesa: “Embarca num poema e navega/Sabe-se a um verso teu e vê-se o mar”.
De facto, muitos foram e são os poetas glosadores do mar. No entanto, não cabe aqui e agora, de forma exaustiva, referir todas essas aportações, a propósito e à colação da Semana da Leitura, este ano subordinada ao tema em questão. Sophia de Mello Breyner Andrensen merece todavia uma menção especial, pois o mar ocupa um lugar de destaque no seu universo literário, quer na prosa narrativa (A Menina do Mar; Histórias da Terra e do Mar) quer em verso (Dia do Mar; Mar Novo). Para Sophia, o mar é o símbolo da dinâmica da vida, donde tudo vem e tudo regressa, ou seja, um lugar de nascimento e de transformação, de vida e de morte (“desde a orla do mar/onde tudo começa intacto no primeiro dia de mim”), lê-se em Dual. A beleza e serenidade do mar e seu cenário como expressão do mundo interior, assume-se ainda na poetisa como meio de purificação: “na sordidez do mundo/Eu me salvei na limpeza da terra/Eu me busquei no vento e me encontrei no mar/ E nunca/ um navio da costa se afastou/sem me levar”. Ou seja, busca-se a praia absoluta que se anseia (“De todos os cantos do mundo/Amo com um amor mais forte e mais profundo/Aquela praia extasiada e nua/ Onde me uni ao mar, ao vento e à lua”), que na hora da morte se deseja eternamente: “Quando eu morrer voltarei para buscar/Os instantes que não vivi junto ao mar”.
Mas também, associado aos Descobrimentos, Sophia relembra, como outros poetas, a fome de conhecimento que impõe sacrifícios: “os que avançam de frente para o mar/E nele entram como uma aguda faca/ A proa negra dos seus barcos/Vivem de pouco pão e de luar”. Sofrimento que Pessoa já havia vaticinado para todos os que desejam alcançar o saber e a imortalização (“Quem quer passar além do Bojador/Tem que passar além da dor”) e que a poetisa também deseja imortalizar (“navegavam sem o mapa que faziam”), porquanto nos revelaram um mundo novo: “depois surgiram as costas luminosas/Silêncios e palmares frescor ardente/E o brilho do visível frente a frente”. Versos que de certa forma permitem percepcionar um diálogo intertextual com Pessoa e a Mensagem, em especial com o poema Horizonte, ante essa procura compensatória do conhecimento: “buscar a linha fria do horizonte/A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte/Os beijos merecidos da Verdade”.
Deste modo, a Canção do Mar, actualmente cantada por Dulce Pontes, é portanto como um canto de sereia que desde sempre nos persegue obsessivamente ao longo de toda a extensa costa deste nosso território: “o meu país é o que o mar não quer”, diz um verso de Ruy Belo. Um mar que muitas vezes assume cambiantes de epicidade, tragédia, mas que também brota em vagas na poesia com em sensações variadas da faina piscatória e do seu pitoresco, como é notório no neo-realismo de Álvaro Feijó na evocação da “mulher de ancas largas, peneirando/como o fluir das vagas/lobos de mar, bamboleando corpos”, ou em António Nobre, que nas lanchas dos poveiros vislumbra a beleza da lida do mar: “que vista admirável!/Que lindo! Que lindo!/ Içam a vela, quando já têm mar”.
Muitos mares, com efeito, se entrecruzam nas rotas da poesia portuguesa. Os mar insular de Vitorino Nemésio, quase familiar, próximo e claustrofóbico, ou os mares pessoais de alguns poetas contemporâneos, como Luís Miguel Nava: “agora que o mar ainda/rebenta é por acção da memória, arancam-me/basalto ao coração ondas fortíssimas” (...) o mar, bata ele onde bater, é uma decalcomania que não podemos arrancar sem que atrás fique o nosso próprio corpo em carne viva”. Mas também o mar humanizado de Gomes Leal (Deixa-me escrever-te, verde mar antigo/Largo Oceano, velho deus limoso/Coração sempre lírico, choroso/Eterno visionário, meu amigo”, que está também presente em nós no romanceiro popular, com a Nau Catrineta: “Passava mais de ano e dia/Que iam de volta do mar/Já não tinham que comer/Já não tinham que manjar”.
Mar que é caminho de liberdade, esperança, aventura e a única saída da nossa prisão telúrica e secular (“Que, depois do mar largo e tormentoso/Possa abrir/As arcas de canela e da pimenta”, como escreve Torga no poema Miragem; mas também algo forte e indissociável da idiossincrasia físico-social do homem português na sua relação com o mundo natural e na sua dialéctica determinada pelo destino lusitano, entre a terra e o mar: “quando chegar a hora decisiva/Procurem-me entre as dunas, dividido/ Entre o mar e a terra/Marujo e cavador, tanto me quer a espuma/Como a folhagem (...) Marujo e cavador terei o mar inteiro/das esperanças humanas/E a terra universal/Da redonda e alada perfeição” (Quando Chegar a Hora, in Cântico do Homem).


Autor do texto: Álvaro Nunes



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