O SENHOR DA CASA DO ALTO | |||||||||
Por António Loureiro (Professor), em 2017/05/05 | 1381 leram | 0 comentários | 212 gostam | ||||||||
“O Senhor da Casa do Alto” de autoria de Carlos Poças Falcão e ilustrações de Mafalda Neves, numa edição da Sociedade Martins Sarmento, patrocinada pela Câmara Municipal de Guimarães. | |||||||||
“O Senhor da Casa do Alto” de autoria de Carlos Poças Falcão e ilustrações de Mafalda Neves, numa edição da Sociedade Martins Sarmento, patrocinada pela Câmara Municipal de Guimarães, é um livro cheio de ternura que nos remete para os tempos idos, datado do pós-primeira guerra mundial, depois de 1923, relatando quer as brincadeiras e passatempos infantis dessa altura, quer a educação (familiar) e a escola dessa época. De facto, eram ainda os tempos das bofetadas, das palmatórias e das canadas, bem como das lousas de ardósia escritas a giz, entre muitas coisas e loisas desse passado recente, como o ilustram estes dois excertos: “E, no meio da confusão, só pensava em como ia explicar à minha mãe todo aquele preparo. Ia levar na cara, era certo e seguro! -Ó avô, os teus pais batiam-te? - Às vezes apanhava. Mas eu até fui poupado, talvez por ser o benjamim, o mais novinho dos oito irmãos.” (…) “Com o coração ao pulos, fui à sacola buscar a lousa, mas, oh desgraça!, a lousa estava em cacos! Com a guerra das cerejas e a brutidão do Pancas, tinha quebrado a lousa. Ai a minha mãe! Ia ter que ouvir e com razão: já era a terceira que eu partia naquele ano! - Ó avô – cortei eu novamente – estás a falar de lousa, mas não sei o que isso é!” (…) Com efeito e a propósito de um trabalho sobre Raul Brandão para a disciplina de português, o avô Joaquim revive e reconta a seu neto alguns episódios da vizinhança com o escritor, aquando da sua meninice e apresenta-nos este autor, amante da liberdade e homem de grande bonomia, na sua faceta mais humanista: o Senhor da Casa do Alto, na companhia de sua esposa Maria Angelina, que lá do alto olham para os de “baixo” com respeito e para as crianças com sentido solidário, tolerante e pedagógico. Duas “almas nobres”, pois “só almas nobres conseguem ser como crianças”. O “roubo” das cerejas é porventura uma dessas passagens repletas de doçura e reflexão, própria das “almas nobres”: “ – Estavas-me a roubar cerejas? – ergueu para mim a voz o dono da casa – Andas a praticar para ladrão? É isso que queres, ser um ladrão? O meu rosto estava vermelho de vergonha. Não sei como, saiu-me pela boca fora esta desculpa, que apanhara na catequese: - Eu não roubei nada! As cerejas são todas de Nosso Senhor e Ele deixa-nos comer as que quisermos … Raul Brandão arreguilou o olhos: - Temos aqui um revolucionário, um socialista cristão, um Proudhon de palmo e meio! Ora já ganhei a manhã! Já viste, Maria Angelina, um Proudhon em nossa casa! O Pancas é que não percebia nada. - Nem eu! – interrompi – Um “prudom”? Ó avô, o que é um “prudom”? O meu avô riu-se. (…) Aqueles dois seres que me sorriam tinham-me dado uma lição para toda a vida, que só muito mais tarde comecei a entender. E, já estava eu já quase no último degrau, eis que ouvi a D. Angelina: - Joaquim, espera aí! Espera aí! Vi-a, então, a descer as escadas com um grande punhado de cerejas e resplandecerem-lhe nas mãos. Enfiou-mas ela mesma na sacola e disse: - Que te saibam bem!”. A “caça” ou apanha de grilos é outra passagem relevante da aprendizagem infanto-juvenil do avô Joaquim, transmitida ao seu neto e vindouros: “Raul Brandão abrigou-se à sombra de um choupo, tirou o chapéu de palhinha, passou pela testa um lenço branco e assim ali ficou ainda um pouco, em silêncio, a ver-nos de longe. Depois, resolveu-se a transpor a pequena vala que bordejava a bouça e veio ter connosco, exposto à soalheira daquele campo aberto. - Não seria melhor – disse-nos ele com um sorriso – deixar os grilos em paz? Vocês não gostam de os ouvir cantar no campo? - A gente não lhes faz mal – respondi. Levamos dois ou três para casa, mas damos-lhes de comer… O Aurélio até lhes faz uma gaiola de madeira. - Ora aí está! – insistiu Raul Brandão . Roubam-nos daqui, prendem-nos, tiram-lhes a liberdade! Isso não é uma maldade? Haverá algum bem maior que a liberdade? - Ó senhor – atreveu-se a Joaninha –, são apenas grilos! - Apenas grilos!- repetiu Raul Brandão, numa voz profunda (…) – ah, meus amiguinhos, que somos nós também senão grilos, homens pequeninos, bichinhos obscuros como grilos! E queremos estar no nosso pequeno campo, queremos cantar, pensando ser livres e felizes … e, zás!, aí vem qualquer coisa (um anjo?, um deus?, um outro homem?, um qualquer pequeno Joaquim por destino ou uma sua irmãzinha por acaso?), aí vem qualquer coisa e leva-nos, rouba-nos, desvia-nos para sempre da nossa mais querida liberdade. (…) Calou-se. Eu e a Joana emudecemos. Que estranho! O nosso peito ardia, num misto de receio e de maravilhamento (…) Enquanto se afastava, regressando ao caminho, eu e a Joana olhámos um para o outro. Ao mesmo tempo, sem combinarmos nada, pegámos nas caixinhas que trazíamos, abrimo-las e devolvemos os nossos escurinhos prisioneiros ao campo, à terra, à sua (e nossa) liberdade”. “O Senhor da Casa do Alto” é efetivamente uma bela história sobre Raul Brandão, Maria Angelina, o pequeno Joaquim … E sobre outras estórias com história que o avô conta a seu neto com muito afeto e sabedoria. E, obviamente, uma homenagem a Raul Brandão, o capitão do Regimento de Infantaria 20 de Guimarães, militar por engano e Senhor da Casa do Alto, em Nespereira, nos 150 anos do seu nascimento. Que as escolas o retirem das estantes, para ler e refletir … Texto escrito por, Álvaro Nunes | |||||||||
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