“DE DIA PODO ÁRVORES, À NOITE SONHO” | |||||
Por António Loureiro (Professor), em 2017/05/24 | 1559 leram | 0 comentários | 868 gostam | ||||
“De dia podo árvores, à noite sonho” é mais um livro sobre Raul Brandão que João Manuel Ribeiro escreveu e Vasco Gargalo ilustrou. | |||||
“De dia podo árvores, à noite sonho” é mais um livro sobre Raul Brandão que João Manuel Ribeiro escreveu e Vasco Gargalo ilustrou, numa edição da Opera Omnia patrocinada pela Câmara Municipal de Guimarães, a propósito dos 150 anos do nascimento do escritor. Com efeito e à laia de livro biográfico, a obra faculta-nos um Raul Brandão mais pessoal e intimista, numa escrita comedida, marcada por uma certa leveza e sobriedade, mas bem fundamentada e documentada, que facilmente nos impele ao prazer de ler. Ora, como é óbvio, num primeiro momento, a obra fala-nos de um Raul Brandão (RB) menino e moço. Das reminiscências familiares, da escola, amigos e brincadeiras e/ou recordações da velha criada Maria Emília, com quem confessa ter aprendido coisas extraordinárias. É pois sobre este jovem e as suas circunstâncias a primeira parte do texto: “Era terça-feira,12 de março de 1867, o mar, o rio e o céu da Foz do Douro davam as mãos para que viesse ao mundo Raul Germano Brandão! Tudo levaria a crer que, nesta freguesia adormecida, vizinha do Porto e da vida, onde moravam alguns pescadores e marinheiros, nascer era algo sem importância. Mas, quando se nasce com olhos azuis, da cor do mar, do rio e da saudade, tudo é inédito e carregado de vida e significados. Quando se é filho e neto de pescadores o mar e o rio correm das veias, e, mesmo em terra, tem-se sempre o coração de água”. De facto, não se nasce impunemente nestas margens. Por isso, escreve em Memórias III: “ a paisagem mais bela do mundo é aquela em que fomos criados e que faz parte da nossa substância”. Paisagem que o nosso Pernalta, assim era a sua alcunha, abandonaria para ingressar no Colégio de S. Carlos de má memória, dirigido pelo mestre Aragão, conhecido por Cabeça de Vitelo, Zé Bezerro e Cabeça de Burro, que RB retrata como uma pessoa estúpida: “tinha nascido para cavar as vinhas do alto Douro – e acabou a diretor de colégio …” . Um colégio em que “não havia sistema de educação – mas entrava-se logo na brutalidade, no egoísmo, na dureza do mundo. Por isso a minha sensibilidade sofreu (…) Fiquei ferido para sempre”. Feridas que, segundo o autor desta obra vai encontrar cura “no mundo mais vasto do espírito, tendo os amigos do ninho dos poetas e do antro fumarento dos nefelibatas como remédio”. Um grupo que se reunia no café Camanho e do qual faziam parte António Nobre e Sampaio Bruno, entre outros. A segunda etapa da vida passa fundamentalmente pela carreira profissional : “A matrícula no Curso Superior de Letras, em 1888, e a filiação no movimento dos Nefelibatas, faria supor que Raul Brandão seguiria a carreira das letras. Se tal foi projetado, depressa foi abandonado. Data de 23 de outubro de 1891 o requerimento de matrícula à Escola do Exército. Aí o escritor passa a ser um número, o 185, com a patente de primeiro sargento graduado, aspirante a oficial. No livro de assentamentos e registos “constam os seguintes dados: altura, 1,85; olhos azuis; nariz grande; cabelo castanho; barba loura; sinais particulares: um sinal na extremidade de cada orelha. Facto raro, este! Como pode este homem pacífico tornar-se militar?” Aquilino Ribeiro, seu amigo, afirma que seria a mãe que teria gostado “de ver o seu menino fardado, taful, cintadinho em correias de anta, pisgado pelas carochinhas das janelas …”. Nemésio, por sua vez, escreve que terá sido “atingido pela lei de recrutamento irremissível”. Porém, não foram saudáveis para o seu intelecto esses tempos militares. Com efeito, em Memórias II, escreve que “na Escola do Exército ensinavam (…) coisas inúteis que me deram mais trabalho a esquecer que a aprender”. E mais adiante: “Durante o tempo em que fui tropa, vivi sempre enrascado, como se diz em calão militar. (…) Data também desta época o início da sua carreira jornalística e vida literária, bem como a sua promoção a alferes e consequente transferência em maio de 1896, com guia de marcha para Guimarães, “cidade que lhe havia de marcar a vida, prendendo-o para sempre”. Guimarães, cidade de paisagens admiráveis de lindas raparigas, como escreve numa carta endereçada ao pintor e amigo Columbano, marca os momentos cruciais da sua vida, propiciando-lhe ainda o amor e o casamento com Maria Angelina, em março de 1897. Um amor que 27 anos depois do casamento é assim sentido apaixonadamente, no segundo volume das Memórias: “um dia destes temos de nos separar, e é natural que seja eu, que sou mais velho, o primeiro a partir … Antes, porém quero dizer-te que te devo o melhor da vida. (…) Não só fazes parte do meu ser, mas da minha consciência”. É nesta fase, intercalada com residências temporárias no Porto e em Lisboa, que RB se dedica mais intensamente ao jornalismo e à escrita, que vai repartindo com os seus deveres militares. Data também deste período a sua viagem pela Europa (1906), em companhia da sua esposa e posteriormente a sua reforma militar, com o posto da capitão, em 1911, bem como a sua fixação de residência na sua Casa do Alto, em Nespereira. “A Casa do Alto – escreve Aquilino Ribeiro – era como os castelos na literatura de maravilha, governados por um génio poderoso, senhor duma varinha de condão, nos gestos da qual giravam e rodopiavam duendes, lémures e mais fauna das profundidades fantásticas” ou, como acrescenta Teixeira de Pascoaes, seu amigo e irmão espiritual, “uma das maiores altitudes da Europa Contemporânea”. A última fase da vida começa em 1930, após as vindimas da Casa do Alto, prolongando-se à dolorosa madrugada de 4 para 5 de dezembro. Assim, como em requiem e premonitoriamente, escreve em “O Pobre de Pedir”, ironicamente a sua derradeira obra: “E chego ao fim exausto, caindo e levantando-me – desesperado e vivo. Agora estou nu diante das estrelas”. Que estas simples notas, extraídas da obra citada, sejam suficientemente persuasivas para provocar a sua leitura mais profunda, que se recomenda vivamente. Texto escrito por, Álvaro Nunes | |||||
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