AMÁLIA POPULAR | |
Por Conceição Páscoa (Professora), em 2020/07/01 | 587 leram | 0 comentários | 163 gostam |
Amália Rodrigues cantou singularmente os grandes poetas portugueses, o seu folclore e as suas marchas, bem como deu voz aos poetas mais populares, que soube conjugar genuinamente no seu timbre único com temáticas bem portuguesas e variadas. | |
“Com que voz chorarei meu triste fado” marca indelevelmente Amália, que cantaria os poetas consagrados como Camões, a que “Busto”, já tinha dado voz. Porém, Amália gravou também faixas musicais mais populares, bem como cantou poesia da sua própria lavra, própria do seu coração independente e da sua forma de vida.“Estranha forma de vida” é um desses exemplos concretos, cujos versos repetidos no primeiro e último de cada quintilha, acentuam o que lhe vai na alma: “Foi por vontade de Deus que eu vivo nesta ansiedade. Que todos os ais são meus, Que é toda a minha saudade Foi por vontade de Deus. (…) Coração independente Coração que não comando: Vive perdido entre a gente, Teimosamente sangrando, Coração independente.” (…) Coração independente que, a despeito da sua diminuta educação formal, escreveria e cantaria ainda “Lágrima”, numa expressão intensa da fragilidade do ser humano exposto à paixão: “ Cheia de penas me deito E com mais penas me levanto Já me ficou no meio do peito O jeito de te querer tanto Tenho por meu desespero Dentro de mim o castigo Eu digo que não te quero E de noite sonho contigo. (…) Se eu soubesse que morrendo Tu me havias de chorar Por uma lágrima tua Que alegria me deixaria matar.” Todavia, além de Amália cantada por ela própria, a fadista daria ainda voz a outros poetas mais populares, dando corda à brejeirice no “Cochicho da Menina”, ou, dando rosto à sede da simplicidade, como em “Vou dar de beber à dor” de Alberto Janes: “Foi no domingo passado que passei à casa onde vivia a Mariquinhas mas está tudo tão mudado que não vi de nenhum lado as tais janelas que tinham tabuinhas. (…) Entrei e onde era a sala, agora está à secretária um sujeito que é lingrinhas, mas não vi colchas com barra nem viola, nem guitarra nem espreitando furtivas as vizinhas. (…) Recordações do calor e das saudades. O gosto que eu vou procurar esquecer numas ginjinhas pois dar de beber à dor é o melhor já dizia a Mariquinhas. Dar de beber à dor que, para além das ginjinhas, poderia também contar com a colaboração do “senhor vinho”: “Oiça lá, ó senhor vinho Vai responder-me, mas com franqueza Porque é que tira toda a firmeza A quem encontra no seu caminho? Lá por beber um copinho a mais Até pessoas pacatas Amigo vinho, em desalinho Vossa mercê faz andar de gatas” (…) De facto, “Amália canta Portugal”, entoado por esse mundo fora, em espetáculos tão diversos como no Hollywood Bowl e o Lincoln Center, que levam a alma musical portuguesa e o seu folclore aos quatro cantos do mundo. Deste modo, canta “Caninha do Mar”, a “Tirana de Paços”, o “Malhão de Águeda”, ou, entre muitos outros temas. Amália faz assim jus às raízes beirãs da sua família, cantando o folclore português, pois, como entoa na cantiga “O Pezinho”: “esta é a moda do pezinho/é bem hora de dançar/dá-se um jeitinho ao pé/e um saltinho para o ar”. Um pezinho de dança que pode também dar jeito no malhão e afins: Ó Malhão triste coitado Por causa de ti Malhão, ai lindo Ando triste apaixonado”. As marchas são outro domínio temático de cariz popular no reportório amaliano, em especial da sua Lisboa de menina e moça dos santos populares. O CD “Amália Marchas” reúne 23 marchas, entre as quais a “Marcha de Alfama”: “Quem na minha Alfama passa Vê-a toda embandeirada Porque o São João da Praça Assentou praça na armada! No alto mar, fomos nós sempre primeiros Porque, afinal, foi destas pobres velas Que saiu Portugal que embarcou nas caravelas”. Porém, é acima de tudo a sua cidade que marcha e canta “Lá vai Lisboa”, não obstante e contrariamente aos tempos de outrora e à letra da canção, este se tenha confinado a casa: “Lá vai Lisboa com a saia cor de mar cada bairro é um noivo que com ela vai casar Lá vai Lisboa com seu arquinho e balão com cantiguinhas na boca e amor no coração! Bairro novo, bairro velho, gente boa Em casa não há quem fique! Vai na marcha todo o povo de Lisboa Da Graça a Campo de Ourique!” Lisboa e os santos populares são de facto temas reiterados de muitas interpretações amalianas, como por exemplo nesta “Noite de Santo António”: Enquanto os bairros cantarem Enquanto houver arraiais Enquanto houver Santo António Lisboa não morre mais”. Com efeito, Lisboa, a cidade de nascimento de Amália, está muito presente na sua voz e alma, como “Cheira a Lisboa”, entre muitos outros: (…) “Um cravo numa água furtada Cheira bem, cheira a Lisboa Uma rosa a florir na tapada Cheira bem, cheira a Lisboa A fragata que se ergue na proa A varina, que teima em passar Cheiram bem porque são de Lisboa Lisboa tem cheiro de flores e de mar” Genuinamente alfacinha e lisboeta dos quatro costados, Amália cantou assim Lisboa e Portugal como ninguém, ainda que politicamente e sub-repticiamente propagandeada pelo Estado Novo, como um país hospitaleiro e da riqueza na “alegria da pobreza”: “Numa casa portuguesa fica bem Pão e vinho sobre a mesa E se à porta humildemente bate alguém Senta-se à mesa co’a gente Fica bem esta franqueza, fica bem Que o povo nunca desmente A alegria da pobreza Está nesta grande riqueza De dar, e ficar contente. Quatro paredes caiadas Um cheirinho a alecrim Um cacho de uvas doiradas Duas rosas no jardim Maios o sol da primavera Uma promessa de beijos Dois braços à minha espera É uma casa portuguesa, com certeza É com certeza, uma casa portuguesa. Em súmula uma intérprete que cantou singularmente os grandes poetas portugueses, o seu folclore e as suas marchas, bem como deu voz aos poetas mais populares, que soube conjugar genuinamente no seu timbre único com temáticas bem portuguesas e variadas. É tempo de ouvir o fado, consagrado pela UNESCO, em 2011,património imaterial da humanidade. É tempo de ouvir Amália … Álvaro Nunes | |
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