250 ANOS DE BOCAGE | |
Por António Loureiro (Professor), em 2015/09/02 | 848 leram | 0 comentários | 141 gostam |
Neste 15 de setembro perpassam 250 anos do nascimento de Bocage, o poeta mitificado pelo povo, que frequentemente associa a sua obra à sua vida e percurso existencial libertino e picaresco. Mas Bocage é muito mais do que isso… | |
De facto, como afirmaria o historiador Teófilo Braga “o povo português só conhece o nome de dois poetas, Camões e Bocage; não porque repita os seus versos (…) mas porque de Camões sabe a lenda do seu amor pela pátria, e de Bocage repete uma ou outra anedota picaresca”. Porém, Bocage é muito mais que a sua obra de veia epigramática, por vezes pejada de obscenidades eróticas e fesceninas, que escandalizava a sociedade do seu tempo com a sua vida irreverente de incorrigível boémio e com o seu lirismo satírico e moralizador, como o documenta este jocoso e mordaz epigrama: Levando um velho avarento Uma pedrada no olho, Pôs-se-lhe no mesmo instante Tamanho como um repolho. Certo doutor, não das dúzias, Mas sim médico perfeito, Dez moedas lhe pedia Para o livrar do defeito. “Dez moedas! (diz o avaro) Meu sangue não desperdiço: Dez moedas por um olho! O outro dou eu por isso”. Com efeito, Bocage é acima de tudo e para além do seu veio satírico, um poeta relevante no panorama literário português. Quiçá um poeta nascido num tempo que não era o seu e por isso mesmo um precursor de uma cosmovisão entre dois mundos: o da estética neoclássica, assente na imitação dos modelos clássicos; e o gosto (pré)-romântico tendo como marcas fundamentais o conflito entre razão e sentimento, o confessionalismo egotista e melancólico, o obsessão do fatalismo e da morte, a paisagem noturna e o tópico do locus horrendus. Ora, Manuel Maria L’Hedoux Barbosa du Bocage (1765-1805) nasceu em Setúbal,filho de um pai formado em Direito e de mãe de descendência francesa, que faleceria quando o poeta tinha apenas 10 anos. Ainda adolescente ingressou na Academia Real da Marinha, onde recebeu parte da sua educação humanista e científica. Contudo é após o abandono dos estudos e vida desbragada e promíscua nos botequins lisboetas setecentistas, em especial no botequim das Parras de seu amigo José Pedro das Luminárias, que Bocage molda o seu temperamento rebelde e inflamado, tornando-se o seu nome bastante conhecido nas tertúlias literárias, em especial no Café Nicola, sito ao Rossio, local a que para sempre fica ligado e recordado pela sua invulgar capacidade de improvisação de versos e rimas. Ary dos Santos recorda-o assim, na obra Sonetos Portugueses (1995): Meu sacana de versos! Meu vadio, Fazes falta ao Rossio. Falta ao Nicola Lisboa é uma sarjeta. É um vazio E é raro o poeta que entre nós faz escola. Mastigam ruminando o desafio, São uns merdosos que nos pedem esmola. Aos vinte anos cheiram a bafio têm joanetes culturais na tola. Que diria Camões, nosso padrinho, ou o Primo Fernando que acarinho como Pessoa viva à cabeceira? O que me vale é que não estou sozinho, ainda se encontram alguns pés de linho crescendo não sei como na estrumeira. Contudo, o poeta não se confinou às sarjetas lisboetas nem à estrumeira . Assim, em 1876 embarcou rumo ao Oriente e paragens como Goa, Damão e Macau, vindo mais tarde a desertar e regressar, em 1790. De novo em Lisboa e atraído pelos ecos da Revolução Francesa adere à Nova Arcádia (Academia de Belas Letras), adotando o pseudónimo Elmano Sadino. Acaba porém por ser expulso desta agremiação literária, devido ao seu espírito independente e indisciplinado. Deste modo e após o afastamento conflituoso com os comparsas da academia, bem como por acusações antirreligiosas e revolucionárias, comportamentos sediciosos, versos de costumes dissolutos e propagação da liberdade contra o despotismo, torna-se também alvo predileto das “moscas” (a polícia do Intendente-Geral Pina Manique), acabando por ser preso, em 1797. Quando sai em liberdade (1799) passa a viver com uma irmã, convertendo-se a uma vida mais regrada, que vem a terminar em doloroso arrependimento, como o expressa em alguns sonetos, nos quais perpassa um sentimento religioso de contrição, como é evidente nesta passagem de angustiado balanço existencial: “Meu ser evaporei na lida insana/Do tropel das paixões, que me arrastava;/Ah!, cego eu cria, ah!, mísero eu sonhava/Em mim quase imortal a essência humana./ (…) Deus, ó Deus … Quando a morte à luz me roube/Ganhe um momento o que perderam anos,/Saiba morrer o que viver não soube.” De facto, uma das características mais salientes do lirismo pré-romântico bocagiano é precisamente o seu pendor confessional e dramático, geralmente acentuado de teatralidade e exacerbada confidencialidade narcísica, patenteando uma conflitualidade interior intensa, marcada por uma estética da espontaneidade. É o caso do soneto do seu autorretrato, mais tarde imitado em pastiche humorístico por Alexandre O’Neill, no qual Bocage, para além do seu aspeto físico, descrito caricaturalmente, esboça o seu perfil psicológico e moral, no qual reconhece a sua instabilidade sentimental: Magro, de olhos azuis, carão moreno, Bem servido de pés, meão de altura, Triste de facha, o mesmo de figura, Nariz alto no meio, e não pequeno; Incapaz de assistir num só terreno, Mais propenso ao furor que à ternura; Bebendo em níveas mãos, por taça escura, De zelos infernais letal veneno; Devoto incensador de mil deidades (Digo, de moças mil) num só momento, E somente no altar amando os frades, Eis Bocage em quem luz algum talento; Saíram dele mesmo estas verdades, Num dia em que se achou mais pachorrento (cagando ao vento, segundo o original). Bocage, efetivamente, crê-se predestinado para a desgraça (“Em sanguíneo carácter foi marcado/Pelos destinos meu primeiro instante”), tal como Camões, outro vate desventurado e irmão de infortúnio, que também lamenta os seus erros, a má fortuna e o amor ardente. Por isso, com ele se identifica : “Camões , grande Camões, quão semelhante/Acho o teu fado ao meu, quando os cotejo!”, não obstante reconheça imitá-lo apenas nos transes da Ventura e não propriamente nos dons da natureza. (Re)ler Bocage dará azo a verificar que nele há dons poéticos e “luz algum talento” … Texto escrito pelo Professor Aposentado Álvaro Nunes | |
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